Monday, January 02, 2006

um silêncio infeliz

José Rodrigues Miguéis está mergulhado num estranho silêncio. raramente é referenciado. continua a ser editado sem o menor cuidado (excepção feita ao trabalho do Círculo de Leitores, que criou uma colecção especial com todas as obras do autor).
há um estranho pudor em volta de Miguéis e ao qual voltarei em breve. para já, enquanto recuperamos das católicas festividades, fica a lembrança da sua "Páscoa Feliz". um livro sublime sobre a morte moral, a morte interior.

"Eu já sofri. Já fui um descontente, um revoltado, se quiserem. Hoje vivo serenamente. A serenidade é a maior virtude da inteligência. O que houve em mim foi um simples conflito dos meios e dos fins. Todo o meu drama se resume nisto. Não discutam se sou mau ou bom. Os actos são bons ou maus, não segundo a vontade, mas segundo os efeitos. E há fatalidades que nos impelem, através do mal, para um destino de beleza perfeita.
A ideia do mal faz-me pensar na Sociedade: estamos quites! Nada fez por mim, nada lhe devo, vivi à margem dela como um cardo à beira dum caminho. Também a não acuso. Não passa duma abstracção para que apela quem já nada espera de si mesmo... Não há senão indivíduos. (Verdadeiramente, só eu existo, eu e estes pensamentos.) E todos exigimos dela alguma coisa!
Mas porque hei-de eu pensar no mundo? É um hábito que fica. Detesto a vida activa! Os gestos que faço, os passos que dou, perturbam-me a vida interior, que é o meu prazer. Esquecimento, quietação! Doutro, não me olhe assim! Não me pergunte mais nada!... Tenho amor a esta casa onde adquiri a certeza definitiva de que existo, porque penso.
Nesta hora solene em que revejo, comovido, a minha biografia, para que hei-de mentir? Eu sou o "homem que obedeceu".
Não me considerem pois um criminoso."

José Rodrigues Miguéis, "Páscoa Feliz", Editorial Estampa, 1981

1 Comments:

Blogger Cadelinha Lésse said...

Gostei particularmente de: "Os actos são bons ou maus, não segundo a vontade, mas segundo os efeitos", o que me faz pensar na facilidade com que nos rotulamos uns aos outros. Falta-nos, por vezes, aceitar. Apenas aceitar.

9:13 AM  

Post a Comment

<< Home