Tuesday, December 27, 2005

aos vencidos

com o aproximar do fim do ano

"Com música forte eu venho,
com minhas cornetas e meus tambores:
não toco hinos
só para os vencedores consagrados,
toco hinos também
para as pessoas batidas e assassinadas.

Vocês já ouviram dizer
que ganhar o dia é bom?

Pois eu digo que é bom também perder:
batalhas são perdidas
com o mesmo espírito
com que são ganhas.

Eu rufo e bato o tambor pelos mortos
e sopro nas minhas embocaduras
o que de mais alto e mais jubiloso
posso por eles.

Vivas àqueles que levaram a pior!
E àqueles cujos navios de guerra
afundaram no mar!
E a todos os generais
das estratégias perdidas,
que foram todos heróis!
E ao sem número dos heróis maiores
que se conhecem!"

Walt Whitman, "Folhas de Erva"

poeta ilimitado

João Luís Barreto Guimarães é um dos poetas, portugueses contemporâneos, que mais gosto. tem uma (d)escrita do quotidiano muito hábil e enternecedora. seja na mesa do café ou na hora do pequeno almoço, em casa, Barreto Guimarães consegue encontrar a poesia dos gestos banais. para alguém mergulhado na banalidade, achar-se rodeado de poesia é como encontrar um lenho flutuante no meio do mar.
Barreto Guimarães está de regresso à blogosfera com "Poesia Ilimitada". aqui voltamos a ter poesia, poetas e traduções inéditas feitas pelo próprio João Luís Barreto Guimarães. o arranque fica marcado pelo passado de poeta do best-seller Dan Brown. vale a pena ler e estabelecer os paralelos possíveis entre o poeta e o homem do "Código Da Vinci".
eu continuo a preferir a poesia do autor do blog, por isso mesmo aqui fica um poema para abrir o apetite e a curiosidade.

"Trinta"

"Hoje aconteceu-me mais um cabelo branco
(não sei se tinhas dado com este:)
fica
mesmo ao lado da risca entre os
vinte e nove e
os trinta. O
dia de amanhã já existe ora
(a hora nas agendas)
lembra uma camisa limpa que
drapeja ao secar
(cada dia que me aceita
propõe
novo recomeço).
Todos temos uma alma gémea
frente ao espelho
tinha feito 15 anos
(hoje acatei outros quinze)
foi sempre no gesso da idade
que
assinei o poema."

João Luís Barreto Guimarães, "Rés-do Chão", Gótica, 2003

Friday, December 23, 2005

bacalhal, bacalhal

amanhã junto a família em reunião ímpar. amanhã é bacalhal. quando os relógios, a pingar tédio, alinharem os ponteiros na vertical, nascerá, nos pratos lá de casa, uma clarírissima posta de bacalhau. quase despida, a postinha será aquecida de um lado pelas batatinhas, do outro pelas couvinhas. o nascimento da postinha é comemorado todos os anos com religiosa pontualidade e dedicação.
como nos restantes anos, o nascimento será presenteado por três sábios, com alho, azeite e vinagre. é assim a minha noite de bacalhal. dizem-me que noutras casas nascem meninos e velhinhos gordos de pijama vermelho. em minha casa só nasce um bacalhau. que não é nem mais nem menos que esse tal menino ou que o velhinho dos refrigerantes.

o gozo da escrita e a escrita do gozo

há um gozo tropical feito de suores e oscilações. um gozo malandro e com ginga. o gozo europeu é picaresco, pouco subtil e muitas vezes mesquinho. quero gozar com o corpo todo. quero um gozo tropicalista.

"Meu gozo é no fazer. É no fazer o verso que o poeta goza. Eu tenho isso: todo verso meu, eu gozei nele. Não escrevo muito porque eu demoro muito para gozar. Eu trabalho muito em cima das palavras, bolino muito as palavras, acaricio. "Uma palavra tirou o roupão para mim", eu escrevi. E é exatamente isso o que acontece."
Manoel de Barros em entrevista.

mundo pequeno

"O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos."

Manoel de Barros, "O Livro das Ignorãças"