Friday, January 13, 2006

a eleição do poeta

no meu país vamos eleger um Poeta. há meses que os candidatos ao lugar de Poeta trocam argumentos para nos convencer de que devem ser os eleitos. Há meses que estamos cansados de ouvir falar em poesia.
um dos candidatos é um poeta canónico. um desses versejadores que entraram para a história da literatura. anda agora pelas ruas a brandir volumes pesados de odes e sonetos, exigindo ser eleito pela obra que construiu ao longo de anos.
não há debate ou discurso em que ele não puxe da obra completa, encadernada com luxo e gravada a ouro. para muitos ele está velho e a bem dizer já ninguém o lê. é um clássico, um daqueles poetas chatos que se estudam na escola e sobre os quais nos exigem análises semânticas e métricas.
um outro candidato garante que fera uma poesia competente e tecnicamente perfeita. jura a pés juntos que os seus versos não terão nem uma sílaba a mais, nem uma sílaba a menos. afirma que sabe, perfeitamente, até onde deve levar o uso das metáforas, metonímias e sinédoques. com ele toda a poesia será exacta e de acordo com as mais rígidas regras ortográficas e gramaticais. os adversários dizem que só percebe de técnica. que tem uma poesia fria, sem alma. que não conhece o mundo, que nunca viu uma borboleta e que, por isso mesmo, as borboletas de que fala são meras abstracções. dizem ainda que não sabe ler a poesia que escreve e que por ser tão frio não há quem a queira ler por ele. em breve, asseguram os outros poetas, ele quererá ser o único poeta. ele vai emudecer os outros poetas e elevar-se-á à condição do único Poeta.
um dos poetas mais radicais opta pela poesia colectiva. que é do trabalho em conjunto que sai a verdadeira poética. na sede dele não sai um verso, ou uma figura de estilo que não sejam votadas por unanimidade e aclamação. assim será o país. a poesia deixará de ser individual e será composta por sindicatos e comissões de trabalhadores.
o mais radical dos candidatos não gosta de regras. entende que todos têm direito a escrever o seu poema como gostam. para ele tudo é um poema, desde que o autor nele se reveja. um dos seus apoiantes apresentou uma conta de somar como sendo um poema. logo um crítico o desmascarou, dizendo que uma operação aritmética nunca será um poema. o candidato radical decretou tratar-se de um atentado à liberdade poética. uma discriminação dos números em favor das letras. porque é que um verso tem de ser mais importante que uma parcela. o crítico calou-se e disse que se tinha enganado. nunca tinha visto um pedaço de poesia matemática tão perfeita e tão livre.
por fim há um candidato a Poeta, que concorre por poesia. ele não quer ser o Poeta. só quer ter o direito a ser considerado como uma hipótese válida para Poeta. a sua candidatura é profundamente poética, fala dos pássaros, das colinas e fala de uma cidade. enfim este candidato só queria ser o Poeta dessa cidade. mas como infelizmente esse cargo não existe, candidata-se ao todo, para gozar o privilégio de ser o Poeta da parte. quem o ouve falar, garante que ele de poesia não percebe nada, mas tem uma voz bonita.
nós vamos escolher o Poeta. nós estamos cansados de poesia. nós queremos regressar a casa, ouvir um disco e descansar enquanto nos deixamos envolver pela leitura compulsiva de um orçamento tórrido, cheio de reformas estruturais e medidas que visam o desenvolvimento do país.

uma caixa de livros

hoje começa uma nova etapa do prémio Daniel Faria. chegou o caixote com os originais. agora é tempo de leitura. espero que o próximo vencedor seja tão bom e feliz como o Rui Costa, com a sua "Nuvem prateada das pessoas graves". o Rui é um dos finalistas, na secção de poesia, na eleição dos melhores de 2005 realizada pelo programa Livro Aberto, do Francisco José Viegas, e do Mil Folhas. amanhã é conhecido o resultado. por agora fica a voz do Daniel a consertar palavras.

"Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio"

"Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a"

Daniel Faria, "Homens que são como lugares mal situados"

fechados no círculo

Portugal continua a manifestar uma aparente esquizofrenia em relação ao Brasil. na literatura então essa multiplicidade é gritante. a Portugal Telecom, que tem importantes investimentos no Brasil, criou o mais valioso prémio literário brasileiro, naturalmente intitulado Prémio PT.
todos os anos é elaborada uma short-list com 10 obras. no dia da entrega do prémio são contados os votos, ao vivo, e é anunciado o vencedor. em 2005 o galardoado foi Amílcar Bettega Barbosa, com o livro de contos "Os lados do círculo". na lista havia autores como Silviano Santiago com "O Falso Mentiroso", Edgard Telles Ribeiro com "Histórias Mirabolantes de Amores Clandestinos", Cíntia Moscovich com a "Arquitectura do Arco-íris", Cristóvão Tezza com "O Fotógrafo" ou Manoel de Barros com os seus "Poemas Rupestres". nenhum deles está publicado em Portugal.
o livro de Bettega Barbosa é um conjunto, muito homogéneo, de contos em torno da circularidade da vida, seja enquanto ideia de eterno retorno, seja como ideia da linha que nos cerca e limita. estes contos giram em torno da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e exploram um universo fortemente devedor da poesia. Bettega Barbosa não tem medo de experimentar e arrisca na composição do texto e na forma como o apresenta. diálogos em colunas justapostas. descrições de lugares e acontecimentos simultâneos, recorrendo a colunas para criar a ideia de simultaneidade.
com as devidas diferenças, encontrei em Bettega Barbosa a vertigem do risco que reside em Gonçalo M. Tavares, ainda que fique bastante aquém do autor de "Jerusalem".
se juntarmos a esta obra, as obras do poeta Manoel de Barros (também ele finalista do prémio PT) temos já razões mais do que suficientes para que à falta de outro meio, a Portugal Telecom encontre um parceiro editorial para publicar estes trabalhos de referência.

"E contraditoriamente é uma convicção, uma convicção tão infudamentadamente lógica que bastava eu andar três quadras da Independência e descer a escadaria da Conceição para sentir como uma bofetada na cara a certeza absoluta de que, exatamente na metade da Alberto Bins, Marta atravessaria a rua com sua sacola enfiada no braço e viria silenciosa incorporar-se aos meus passos, na mesma marcha, no mesmo itinerário que nunca conhecíamos de antemão mas que, ao contrário, ia sendo descoberto a cada metro, a cada passo, e nós dois, juntos, nós dois já não mais temíamos a aproximação de nenhuma esquina porque já era certo, não havia nada mais certo do que isso, de que no momento decisivo, quase sobre o cruzamento, tomaríamos sem vacilo a única direção que nos conduziria ao fim, e continuaríamos sem sequer
olharmos para os lados, enormemente agradecidos a essa força noturna que nos une e nos ilumina, e já sentindo crescer na garganta a alegria infantil de ver que tudo começava tão bem."

Amílcar Bettega Barbosa. "Os lados do círculo", Companhia das Letras, 2004

Tuesday, January 10, 2006

o irmão Dalton

"— Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz.
— ...
— Menino beija menina.
— Você é gozada, cara.
— ...
— Pensa que elas deixam?"


"Crianças (seleção)", edição de autor em Curitiba, 2001


nasceu em Curitiba há mais de 80 anos. ainda assim é um desconhecido em Portugal. é certo que a muito nossa Portugal Telecom até lhe deu, em 2003, um prémio (a meias com Bernardo Carvalho). o Bernardo já tem vários livros editados em Portugal, e metade da idade.
Dalton Trevisan começou a escrever os seus contos com 20 anos. dedicou-se exclusivamente ao conto. apenas publicou um romance. por isso é hoje visto, por muitos, como um dos maiores contistas brasileiros. por cá, de pouco lhe vale.
tal como herberto helder, também Dalton virou um hermita. vive fechado na sua casa de Curitiba e não recebe visitas de ninguém. hoje é conhecido como o "Vampiro de Curitiba" (título de um dos seus livros).
os seus contos são marcados por dois elementos: a síntese e o sentido de humor.

"os dois velhinhos

Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.
Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:
— Um cachorro ergue a perninha no poste.
Mais tarde:
— Uma menina de vestido branco pulando corda.
Ou ainda:
— Agora é um enterro de luxo.
Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.
Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.
Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo."


Dalton Trevisan, "Mistérios de Curitiba", Editora Record, 1979

Monday, January 09, 2006

Pyongyang

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Guy Delisle é um cartonista canadiano que graças ao trabalho que desenvolve num estúdio de animação francês, teve a oportunidade de entrar na capital da Coreia do Norte, Pyongyang.
Esse é também o nome do livro que lançou recentemente pela Draw and Quarterly, "Pyongyang, A Journey in North Korea". Trata-se do relato de um país completamente desconhecido para os ocidentais. Uma reportagem em banda desenhada, à semelhança dos trabalhos de Joe Sacco.
Guy faz uma descrição dos dois meses de trabalho nos estúdios de animação estatais, sem cair na tentação de ridicularizar a Coreia, nem tão pouco de fazer uma lavagem ao cérebro sobre a vida nas terras de Kim Il Sung.
Ainda assim dá para ficar a saber que à noite não há iluminação pública em Pyongyang, não há internet e que o grande cinema do estado só abre uma vez de dois em dois anos para acolher um festival onde participam países como o Irão, Iraque ou a Líbia.
Mas a globalização também já chegou a estas terras. Os estúdios europeus, que ainda não se renderam à tecnologia digital para fazer as suas animações, recorrem à mão-de-obra barata da Coreia do Norte. Outrora foi a China, mas até os chineses já foram ultrapassados. A Coreia do Norte é agora o sabor da estação.
Numa cidade com um ambiente quase que esterelizado, onde não há um vestígio de sujidade, vive-se uma vida higiénica.
As semanas são de seis dias e o sétimo é dedicado a trabalho "voluntário" e aos ensaios para as grandes celebrações em honra do Estado e do líder.
Guy deixou ao seu guia, como recordação, uma edição do "1984" de George Orwell, em compensação trouxe este livro extraordinário.

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Para a Fonte das Virtudes

saiu um livro cheio de Porto. um Porto que não é feliz. um porto de anjos à beira rio. de ruas de caldeireiros e de cordoarias com jardim. é um Porto de Jorge de Sousa Braga. depois de Ferida Aberta, este é o mais bonito livro de Sousa Braga. este é um livro só de Porto, por isso aqui fica um nadinha dedicado a um blog de muito Porto.

Porto de Abrigo

"É esta cidade que o destino
te reservou. Uma cidade de

gente dura cuja maior
extravagância é um vaso

de sardinheiras na janela
de um ou outro edifício.

Tinhas sonhado com uma
cidade branca mais a sul...

Esta cidade não é uma cida-
de é um vício."

Jorge Sousa Braga, "Porto de Abrigo", Assírio e Alvim, 2005

Thursday, January 05, 2006

de vagar se chega ao monge

por estes dias fiquei a conhecer um poeta. não que tenha tropeçado num qualquer livro. mas porque morreu. e cá as pessoas só nascem quando morrem. este poeta esteve morto em hospícios durante muitos anos. agora nasceu. como ele diria "devagar se vai ao longe". e ele no seu vagar fez-se monge, ou dele um monge fizeram. atirado para o hospício. é só isto. nasceu um poeta, que viveu morto e monge. mas que vai longe. chama-se António Gancho.

“Devagar se vai ao longe”

"Devagar se vai ao longe
se eu fosse monge.
Mas como não sou monge
devagar não vou ao longe
só monge.
Mas como eu também
devagar não quero ir ao longe
por isso também não me fiz monge.
Mas como eu também
não quero que se sonhe
que se ponha em questão
a causa da razão
deste poema devagar se vai ao longe
cujo tema é sobre um monge
então por isso neste caso
já não omisso
faço que se diga com isso
amigo ou amiga
mais vale o prejuízo."

António Gancho

Wednesday, January 04, 2006

não deixem morrer a Poetria

a Dina e a Dulce da Livraria Poetria correm o risco de ter que fechar as portas da única livraria especializada em poesia e teatro da Península Ibérica.
estão a enviar e-mails a pedir ajuda para que o projecto não morra. antes mesmo de comprar uns quantos livros, deixo aqui a mensagem na esperança que outros ajudem.

1. Comece o ano com poesia, aplicando a 2006 a sábia e límpida palavra de DANIEL FARIA:

“Seja o que for

Será bom.

É tudo.”

2. Ajude-nos a vencer a crise. Basta que nos visite (ou volte a visitar-nos) e nos compre um livro de poesia ou teatro.

Se preferir recebê-lo comodamente em sua casa, à cobrança, só precisamos que nos indique um título ou um autor assim como o nome e endereço de destino.

Também poderemos escolhê-lo por si se gostar de ser surpreendido e nos disser qual o valor limite. Não o(a) desapontaremos.

3. A sua intervenção poderá evitar o desaparecimento da ÚNICA LIVRARIA DA PENÍNSULA IBÉRICA onde só moram livros de poesia e teatro.

“Abraça-me com força

agora que vou morrer”


Manuel de Freitas, in “Jukebox”

Monday, January 02, 2006

um silêncio infeliz

José Rodrigues Miguéis está mergulhado num estranho silêncio. raramente é referenciado. continua a ser editado sem o menor cuidado (excepção feita ao trabalho do Círculo de Leitores, que criou uma colecção especial com todas as obras do autor).
há um estranho pudor em volta de Miguéis e ao qual voltarei em breve. para já, enquanto recuperamos das católicas festividades, fica a lembrança da sua "Páscoa Feliz". um livro sublime sobre a morte moral, a morte interior.

"Eu já sofri. Já fui um descontente, um revoltado, se quiserem. Hoje vivo serenamente. A serenidade é a maior virtude da inteligência. O que houve em mim foi um simples conflito dos meios e dos fins. Todo o meu drama se resume nisto. Não discutam se sou mau ou bom. Os actos são bons ou maus, não segundo a vontade, mas segundo os efeitos. E há fatalidades que nos impelem, através do mal, para um destino de beleza perfeita.
A ideia do mal faz-me pensar na Sociedade: estamos quites! Nada fez por mim, nada lhe devo, vivi à margem dela como um cardo à beira dum caminho. Também a não acuso. Não passa duma abstracção para que apela quem já nada espera de si mesmo... Não há senão indivíduos. (Verdadeiramente, só eu existo, eu e estes pensamentos.) E todos exigimos dela alguma coisa!
Mas porque hei-de eu pensar no mundo? É um hábito que fica. Detesto a vida activa! Os gestos que faço, os passos que dou, perturbam-me a vida interior, que é o meu prazer. Esquecimento, quietação! Doutro, não me olhe assim! Não me pergunte mais nada!... Tenho amor a esta casa onde adquiri a certeza definitiva de que existo, porque penso.
Nesta hora solene em que revejo, comovido, a minha biografia, para que hei-de mentir? Eu sou o "homem que obedeceu".
Não me considerem pois um criminoso."

José Rodrigues Miguéis, "Páscoa Feliz", Editorial Estampa, 1981